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Enurese Noturna e Vinculação - que relação?

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enurese noturna constitui-se numa condição clínica comum durante a infância, sendo caraterizada pela perda involuntária de urina durante o sono, com uma frequência mínima de três vezes por semana, em crianças com idades superiores a cinco anos e na ausência de complicações neurológicas ou malformações congénitas (Butler, 2001). Ainda que a enurese noturna envolva fatores de natureza orgânica, como o desenvolvimento do controlo da bexiga, a evidência empírica tem observado uma interação complexa entre o funcionamento fisiológico e o ambiente emocional da criança. No estudo epidemiológico de Verhulst e colegas (1985), os autores verificaram que entre 15% a 22% dos rapazes e 7% a 15% das raparigas com sete anos continuam a demonstrar dificuldades no controlo dos esfíncteres. Contudo, constaram também que este fenómeno tende a diminuir à medida que a idade avança, atingindo entre 1% a 2% na adolescência. Neste sentido, a enurese noturna tem sido tradicionalmente interpretada à luz de fatores fisiológicos, no entanto esta perturbação revela-se sensível a diversas influências, entre as quais se destacam os aspetos emocionais e relacionais da criança (Koch et al., 2015). É neste contexto que se mostra imperativo refletir sobre a forma como a qualidade da vinculação pode interagir com o surgimento e/ou persistência da enurese, assim como as suas orientações interventivas.



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Segundo Marcelli (1998), a enurese pode estar associada a processos regressivos ativados por experiências de vida particularmente ameaçadoras ou desorganizadoras para a criança. A perda de uma figura parental, o nascimento de um irmão, internamentos ou intervenções cirúrgicas nos primeiros anos de vida podem constituir-se como fatores que interferem negativamente com a aquisição do controlo urinário. A estas dimensões, acrescenta-se ainda a vivência afetiva e emocional da criança que podem atribuir à enurese uma função da expressão simbólica de tensões e conflitos internos. Seguindo a linha de pensamento exposta, Stein (1998) defende uma leitura psicodinâmica da enurese, associando-a a padrões de vinculação insegura estabelecidos nas primeiras interações entre o bebé e a figura de vinculação. A capacidade desta figura em reconhecer, conter e transformar os estados afetivos negativos da criança desempenha um papel determinante no desenvolvimento de recursos de autorregulação emocional. Quando esta resposta falha de forma sistemática, a criança vê-se obrigada a procurar estratégias alternativas para gerir o desconforto interno, o que pode traduzir-se em manifestações somáticas como a enurese. Assim, a criança desenvolve mecanismos defensivos que visam suprimir o mal-estar, e não as suas causas, prolongando um padrão de funcionamento centrado na defesa, ao invés da elaboração emocional.  É neste contexto que a ausência de uma relação responsiva e securizante com os cuidadores pode levar a criança a procurar formas de assegurar a presença e a atenção do outro. Nestes casos, a enurese pode emergir como uma tentativa de restaurar um sentido de vínculo afetivo ou de expressar uma carência afetiva (Stein, 1998).


Do ponto de vista clínico, a compreensão destes casos deve ser considerada através de uma abordagem que se estende para além da modificação comportamental. De acordo com Stein (1998), é necessário considerar o papel que o sintoma desempenha na organização psíquica da criança. Desta forma, a enurese pode funcionar como uma espécie de ego auxiliar, colmatando falhas no desenvolvimento de uma estrutura do self coesa e integrada. Deste modo, a intervenção deve incluir uma dimensão psicoterapêutica que permita à criança aceder, reconhecer e expressar a sua experiência emocional. Neste sentido, o envolvimento dos pais revela-se também fundamental. Alguns estudos têm demonstrado que intervenções dirigidas à promoção da sensibilidade materna resultam numa melhoria significativa da relação entre o bebé e a figura de vinculação, bem como uma redução dos comportamentos somáticos, como a enurese. Os pais devem ainda privilegiar respostas empáticas e compreensiva face à enurese, evitando reações punitivas ou humilhantes que possam intensificar sentimentos de vergonha, culpa ou ansiedade na criança. Desta forma, é necessário a existência de uma abordagem integrativa que envolva a compreensão emocional da criança, bem como o apoio responsivo dos pais, promovendo um ambiente de segurança e confiança que favoreça o desenvolvimento saudável da criança.


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Referências Bibliográficas

  • Butler, R. J. (2001). Impact of nocturnal enuresis on children and young people. Scandinavian Journal of Urology and Nephrology35(3), 169-176. https://doi.org/10.1080/003655901750291908

  • Koch, V. H., Navarro, J. M., & Okay, Y. (2015). Enurese noturna. Revisões e Ensaios, 10-17.

  • Marcelli, D. (1998). Manual de psicopatologia da infância de Ajuriaguerra. In Manual de psicopatologia da infância de Ajuriaguerra, 410-410.

  • Stein, S. M. (1998). Enuresis, early attachment and intimacy. British Journal of Psychotherapy15(2), 167-176.

  • Verhulst, F. C., Van der Lee, J. H., Akkerhuis, G. W., Sanders‐Woudstra, J. A. R., Timmer, F. C., & Donkhorst, I. D. (1985). The prevalence of nocturnal enuresis: do DSM III criteria need to be changed? A brief research report. Journal of Child Psychology and Psychiatry26(6), 989-993.

 

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